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2020: Era impossível prever um cenário de escolas fechadas e aulas remotas?

Escolas fechando de forma abrupta, aumento de desigualdades, instabilidades, prescrição de ecossistemas de aprendizagem e comunicação emergenciais, adoção de realidades pouco testadas, exaustão, medo e, também, intrepidez. Poderia ser mais uma narrativa sobre 2020, aulas remotas e os reflexos de uma pandemia devastadora, mas na verdade é uma realidade bem conhecida e recorrente na  história da educação brasileira.   

Mais de cinquenta anos após a publicação da Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire segue atual ao advertir sobre a necessidade de estabelecermos relações entre a realidade e a experiência existencial de educandos – e educadores. Talvez, a insistência em tratar realidades da educação como fatos isolados, casos fortuitos, surpresas e “hypes (modismos) do ano” seja um ponto a ser levantado antes de declararmos o ano de 2020 como o ano que ninguém nunca previu.  

Será que alguns olhares para trás poderiam ter nos ajudado a prevenir e tratar as mais recentes dores na Educação neste período de aulas remotas? A provocação aqui não é apenas pressupor que não aprendemos com a história, mas também questionar as histórias que estamos escolhendo contar e documentar como prioridades. Nos últimos 15 meses, quantas vezes você ouviu o clássico “estamos vivendo tempos inéditos na educação”?

“Nos últimos 15 meses, quantas vezes você ouviu o clássico ‘estamos vivendo tempos inéditos na educação’?” 

Segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) sobre o número de estabelecimentos de ensino na Educação Básica, mais de 80 mil escolas rurais foram fechadas entre 1997 e 2020. Porém, desafiando a conjuntura, movimentos sociais, quilombolas, ribeirinhos e de povos indígenas mantiveram e mantêm viva a educação em espaços de ensino e aprendizagem que equilibram saberes e especificidades. 

Mas e se a gente olhar para um passado bem mais recente? Entre os anos de 2015 e 2016, mais de mil escolas no Brasil fecharam suas portas, temporariamente, para as “aulas tradicionais”. Em busca de um ensino público de qualidade e uma educação mais inclusiva, estudantes estiveram na linha de frente contra algumas  mudanças promovidas na área de educação, dentre elas a PEC 241, a reforma do Ensino Médio. As ocupações estudantis trouxeram uma demanda por uma participação mais ampla  do próprio processo pedagógico, e por isso os estudantes optaram por fechar as escolas, mas não por parar a educação. Tendo acompanhado e pesquisado sobre as ocupações, posso afirmar, sem medo, que nesses movimentos estudantis surgiram novas maneiras de articular, aproximar, relacionar, mobilizar e gerir comunidades de aprendizagem, através do uso multidimensional das tecnologias.  

Em comum, entre o fechamento recorrente de escolas públicas em áreas rurais e de risco, a Primavera Estudantil e o ano de 2020 são questionamentos sobre três grandes suposições na priorização da educação: Qual é o papel das escolas? Como funcionam as dinâmicas da autonomia estudantil e comunitária na gestão do conhecimento coletivo, e qual é o real papel das tecnologias de informação na educação? Questões essas que deixarei em suspenso, para que você possa responder a partir dos contextos que você conhece.

“A presença não é sinônimo de “câmeras  e microfones abertos”, de checklists e cliques” 

Priorizar a educação, em sua essência, é priorizar a humanização, a pluralidade, o pertencimento, a autenticidade e as relações e recursos locais. O processo de aprendizagem só vigora se sustentado pelo próprio mundo do aluno. 

Muito além de um cenário nada inédito, de escolas fechadas e aulas remotas, continuamos a testemunhar ausências importantes na construção de uma educação planetária, justa e equitativa. Deixamos de celebrar presenças importantes e que fizeram com que, mais uma vez, a educação não parasse. Mas que presenças são essas? 

A presença não é sinônimo de “câmeras  e microfones abertos”, de checklists e cliques.  Todos nós já experimentamos o poder da presença: aqueles momentos em que estamos profundamente imersos em fruir as existências que nos rodeiam e o que acontece lá é real e profundo.  

As presenças criadas, por exemplo, pela criação da Rádio de Bitita, Uma rádio, em formato multimidiático, produzida pela comunidade escolar da EMEF Infante Dom Henrique/Espaço de BITITA, em São Paulo (SP).  A presença de Jota Marques, que  faz parte das juventudes comprometidas com a educação, professor, conselheiro tutelar, morador da Cidade de Deus, no Rio de Janeiro (RJ), e que está nesse momento construindo uma biblioteca, e espaço de aprendizagem e trocas, em sua comunidade. A presença de Poty Poran na Escola Estadual Indígena Krukutu, quando promove a valorização das identidades e tradições de seus alunos. A presença de  Gislaine Alvez Kamer Bento, da  Escola Estadual Professor Cid Boucault, em Mogi das Cruzes (SP), possibilitou, durante a pandemia, acesso ao aprendizado para seus alunos com deficiência auditiva. Enfim, a presença dos milhões de educadores e líderes educacionais que todos os dias buscam estar presentes nas vidas de seus alunos.

“A discussão mais importante, neste momento, não é sobre ferramentas, acessórios e receitas prontas” 

A discussão mais importante, neste momento, não é sobre ferramentas, acessórios e receitas prontas. Afinal, já percebemos que de uma hora para outra elas expiram, desaparecem, excluem e passam de gratuitas a pagas. A discussão mais importante que precisamos ter é sobre como combater as ausências e divulgar as presenças que desafiam o agora. É sobre recalibragem contínua em contextos que nunca foram e nunca serão “apenas normais”.  A discussão é sobre voz e vez, sobre quem não está na mesa decisora. A discussão é sobre não calar,  reconhecer que pouco sabemos e que aprender é para sempre. 

O que precisamos internalizar é  que 2020 não foi um ano inédito na educação, mas que 2021 poderá ser, se realmente pararmos para aprender, ouvir, incluir, reconhecer, mobilizar, colaborar e transformar. A lição que a gente tira de todos esses meses e anos na educação – e na vida – é que educação e seus futuros, se faz com gente, e como já dizia o poeta Emicida,  “tudo que nóis tem, é nóis”.  

* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir

GISELLE SANTOS  

Graduada em Marketing pela Universidade Estácio de Sá, especialista em Gestão da Inovação Corporativa e membro da primeira turma de Estudos de Futuro da Casa Firjan. Trabalhou 25 anos na área de ensino de Inglês como Língua Estrangeira atuando como professora, coordenadora e designer de cursos. Até fevereiro de 2020, atuou como Head de Inovação Acadêmica da Spot Educação. Hoje em dia, atua em sua sua startup, a human:ia, iniciativa fundamentada na intenção de criar, através da Educação, acessos descomplicados, e mais inclusivos, para o entendimento e uso combinado das inteligências humanas e artificiais. Expert de produtos Google for Education, Google Innovator e membro do Painel de Especialistas em Inovação do Horizon Report K12 entre os anos de 2014 e 2017, Giselle é uma entusiasta das práticas inovadoras e tecnologias educacionais, curiosa por natureza e investigadora de temas como Afrofuturismo, tecnologias disruptivas e  aplicação de inteligência artificial na Educação. Diariamente compartilha dicas de inovação, educação e inteligências híbridas através do seu perfil @feedtheteacher, onde tem a oportunidade de se conectar digitalmente a mais de 20.000 educadores. Em suas horas vagas, liberta brinquedos, dança com seus doguinhos e desafia o status-quo.

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