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Livro literário não é para ser útil

Livro, inútil? Como, se todos sabemos que os livros transformam? Desde a primeira infância, desde bebês, desde a barriga – quanto mais cedo melhor porque, para além dos benefícios cognitivos – atenção, concentração, vocabulário, memória, raciocínio –, também os potenciais menos tangíveis como imaginação, curiosidade e criatividade se expandem diante das histórias. Tem mais: ao entrarmos em uma narrativa, conhecemos mais sobre o mundo e as pessoas, e ao nos colocarmos no lugar do personagem desenvolvemos empatia. Essa exposição a mundos e sensações também possibilita que nos reconheçamos nas situações e assim fica mais fácil nomear emoções e identificar sentimentos. Ufa! Tem mais, muito mais, mas vamos fazer uma pausa por aqui na lista dos benefícios para não perder o raciocínio. Como é que um objeto com essa potência pode não ser útil?

Os lugares em nós em que os livros são capazes de chegar são muitos e a forma como isso acontece, quase mágica. Mas só se, bem – só se os livros forem lidos. E os livros só serão lidos se forem bons. Quando digo lidos falo de fome de ler, com vontade e prazer, sabem? E quando digo bons… bem, é aí que começa o desafio das famílias, dos professores, dos cuidadores, de todo mundo que sabe da importância da leitura e que tenha interesse em formar leitores, sabendo que formar leitores vai muito além de conseguir fazer com que as crianças leiam alguns livros para determinadas atividades escolares.

O que é um livro bom? Primeiro, vamos separar os livros: o “bom” do livro didático é diferente do “bom” do livro literário, que é aquele que se lê por prazer, dissociado da obrigação. No entanto, tem sido cada vez mais comum ver os livros “de ler em casa”, ou seja, aqueles que deveriam ser lidos por prazer, sendo usados com algum objetivo. Tenho me deparado com uma quantidade imensa de manchetes que dizem “confira dez livros para falar de (complete: diversidade, gentileza, morte, medo) com crianças”. Sim, existem muitos livros maravilhosos para se falar sobre determinados assuntos com as crianças. Mas muito provavelmente a maioria deles não foi escrita com esse objetivo. Nem todos os livros precisam falar de alguma coisa. A literatura é, acima de tudo, arte. E como toda arte, fala de um jeito único e forma, com cada um de nós, uma nova obra feita da soma do que está no livro com o que está na gente. Como universalizar uma coisa assim? Como pegar uma obra de arte e colocar num cesto destinado a determinada utilidade?

Rosângela Vieira Rocha, jornalista e autora de livros para adultos e crianças, diz que a literatura “…não precisa servir a nada, a causa alguma, tem total liberdade e não é feita para que o leitor entenda alguma coisa. Se é de boa qualidade, aí sim, pode conduzir o leitor a uma visão diferente de mundo, mesmo que o/a autor/a não tenha levado em conta nenhum objetivo determinado, no momento da criação. Literatura não é panfleto e nem livro didático, não é feita para educar. Seu compromisso é muito mais amplo.” É possível escolher bons títulos para abordar determinados assuntos com as crianças, mas não é possível escrever um livro literário com o objetivo de abordar determinado assunto com as crianças – ele já nasceria, no mínimo, paradidático. Esse é um bom parâmetro de escolha: o livro foi escrito com esse objetivo, ou depois de escrito é que foi descoberto como meio para se discutir determinado assunto?

Outro dia recebi de uma editora um livro com uma seleção de contos que têm como protagonistas os Ogros. São histórias fantásticas com bruxas, feitiços, animais falantes. Histórias que nos fazem viajar para mundos mágicos, ter medo dos monstros, torcer pelos heróis. São histórias. Sim, são livros para se falar de medo com as crianças – e o são justamente porque não foram feitos com tal objetivo, foram feitos para envolver, emocionar. É só o que envolve e emociona que tem o poder de transformar. Agora imagine um livro hipotético cujo título se chame “Vamos falar sobre o medo?”. Qual dos dois seria mais interessante? Qual teria a preferência das crianças?

Mas e quando a escola indica um livro literário? Tem que virar, automaticamente, paradidático? É claro que não; tudo depende de como a escola conduz essa indicação. É possível pegar um livro de grande valor literário e reduzi-lo a um caça-figuras de linguagem – quanto desperdício! Mas também é possível explorá-lo por meio de um currículo literário, sem escolarizar, sem transformá-lo em utilitário.

Disse Daniel Pennac: há algo em comum entre os verbos “amar”, “sonhar” e “ler”: nenhum deles aceita o imperativo. Podemos até tentar mandar alguém amar, mas se a pessoa não sentir aquilo, ordem nenhuma fará efeito. O mesmo com os sonhos: podemos tentar mandar alguém sonhar o quanto quisermos, mas na hora que a pessoa deitar e fechar os olhos, aquilo só dependerá dela. Com a leitura acontece a mesma coisa. Não vai adiantar nada mandar uma criança ler sozinha se a semente do prazer pela leitura não tiver sido semeada. Os olhos podem até acompanhar o texto no papel. Podem até identificar palavras ou figuras de linguagem. Mas não terão lido de verdade – vocês sabem do que estou falando: aquele ler que envolve, que faz a gente se esquecer de onde está porque mergulhou nas páginas e viveu aquelas vidas. Aquele livro que fica na gente mesmo muito tempo depois de termos lido a última linha. Aquelas histórias que se misturam às nossas próprias e fazem parte de quem somos.

Quanto menos útil um livro tiver a pretensão de ser, maior a chance de isso acontecer.

LUCIANA LOEW

Consultora de comunicação, pesquisadora e especialista em textos literários com pós-graduação nos núcleos de ficção e infantojuvenil no Instituto Vera Cruz, em São Paulo. É colunista da revista Pais&Filhos e do blog Saúde Infantil, do Instituto Pensi, onde fala para pais, mães e cuidadores sobre como as histórias infantis são capazes de encantar – não só as crianças – e transformar o mundo.

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