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Mentira na primeira infância exige compreensão além de moralismos

Na casa de Renata Chagas, de 40 anos, o acesso ao YouTube envolve alguns combinados entre ela e o filho Benjamin, de 6 anos. Certo dia, ela chegou do trabalho e o encontrou assistindo vídeos de um dos canais vetados. “Quando ele percebeu minha presença, correu para esconder o que estava fazendo. Fiquei em choque! Além de ele estar me desobedecendo, achou que podia me enganar. Meu primeiro pensamento foi o que eu estava fazendo de errado e se ele já tinha escondido outras coisas de mim”, lembra. 

A primeira mentira que os filhos contam é marcante para muitas famílias. Quando ela chega, é comum surgir dúvidas sobre a melhor forma de resolver a situação. É sempre bom começar pelo entendimento de que contar uma mentira aqui, outra acolá é parte do comportamento social de todos nós. E as crianças, atentas que são, aprendem rapidinho a usar esse recurso narrativo. 

Mas vale dizer que a mentira na primeira infância faz parte do desenvolvimento cognitivo da criança e tem um papel importante a cumprir. Por isso, especialistas alertam que o assunto requer uma reflexão aprofundada, que vai além da classificação desse comportamento em “certo e errado”, “bom ou ruim”. 

Quando elas aparecem

As primeiras mentiras não demoram a surgir. Um estudo da Universidade de Waterloo, no Canadá, mostrou que, com dois anos de idade, 65% das crianças analisadas na pesquisa já tinham mentido uma vez. Aos quatro, esse número chegou a 94%. 

Nessa fase, as crianças já estão mais apropriadas da linguagem e seus usos e com maior capacidade para organizar ideias e pensamentos. Também estão aprendendo a lidar com as emoções. Nesse balaio todo de aprendizados e experiências, a mentira pode ser uma forma de expressar imaginação e criatividade. 

“Muitas vezes, aquilo que o adulto nomeia como mentira está mais relacionado à fantasia, e para a criança bem pequena, o limite entre fantasia e realidade é tênue”, destaca Elizabeth dos Reis Sanada, docente e coordenadora do curso de pós-graduação em psicopedagogia, do Instituto Singularidades.  

Os limites entre mentira e fantasia 

A especialista explica que até os cinco anos as crianças têm pensamento animista, ou seja, agregam com frequência características humanas a seres inanimados. É isso que faz com que elas, por exemplo, tomem uma atitude porque “o brinquedo favorito pediu” ou fiquem por horas conversando com um amigo imaginário.

“Não é incomum a criança usar um dado da fantasia para justificar uma atitude ou contar como verdade algo que não aconteceu bem daquela forma, mas ela gostaria que tivesse acontecido. A compreensão entre o que é fantasia e realidade vai surgindo de forma natural e gradual, na interação com o outro”, explica Sanada. 

Psicóloga da escola Tarsila do Amaral, que atende crianças do berçário ao fundamental na zona norte de São Paulo (SP), Angela Carbonari destaca que os adultos não devem se assustar com essa imersão da criança no mundo da fantasia. “Na verdade, é algo saudável. Na medida em que a criança tem contato com contos ou histórias de universos mágicos, ela vai adquirindo repertório para entender o que está ao seu redor, se relacionar com pessoas e elaborar sentimentos e emoções”, explica. 

A mentira tem seu lado bom

Mesmo quando sai do campo da fantasia, é difícil que a mentira na primeira infância esteja associada a uma vontade de enganar ou causar dano a alguém. Muitas vezes, as crianças recorrem a ela para lidar com situações difíceis, evitar punições ou ganhar recompensas. Também pode ser artifício para que se sintam mais seguras dentro de um determinado contexto ou ambiente. 

A docente do Instituto Singularidades, Elizabeth Sanada, defende que se mude o olhar em relação à mentira, saindo de um ponto de vista meramente moral ou negativo. Isso porque esse tipo de narrativa é indicativo de um bom desenvolvimento cognitivo da criança. Quando a mentira sai pela boca, o cérebro já fez uma leitura elaborada da realidade, considerando o que se deseja e os caminhos para que isso seja alcançado. 

“A mentira aponta para a condição da criança de trazer metáforas para lidar com situações da realidade, e isso é algo inerente ao aprendizado social. Nós, adultos, sabemos que há situações em que não cabe a honestidade total. Esse processo de metaforização é o que faz com que tenhamos autorregulação e uma certa flexibilidade cognitiva para avaliar quando é preciso dizer e quando é preciso omitir algumas coisas”, explica. 

A melhor abordagem

Mesmo que a mentira na primeira infância seja parte do desenvolvimento, os adultos, sejam familiares ou educadores, devem atuar como mediadores da realidade, apontando para as crianças as consequências de seus atos. 

Quando pegou o filho tentando enganá-la, Renata Chagas disse que, primeiro, lidou com a frustração de ver Benjamin descumprindo um combinado dos dois. Depois, dedicou um bom tempo a fazer o filho entender o problema de uma atitude como aquela.  “Chamei ele para conversar e expliquei as consequências da mentira e o que acontece quando perdemos a confiança nas pessoas. Na conversa, fiz ele entender que esconder as coisas das pessoas que amamos nunca é uma opção. E para que ele aprendesse a lidar com as consequências de suas escolhas, suspendi o uso do celular por um tempo”. 

As duas especialistas ouvidas nesta matéria também indicam o diálogo e o acolhimento como as principais estratégias para lidar com a mentira. A resposta não deve acontecer pela via da punição, mas da orientação. Além de apontar as possíveis consequências de um ato infracional, o adulto deve também valorizar quando a criança decide revelar a verdade por trás de determinada situação-problema. É isso que vai fortalecer o laço de confiança, como indica Sanada: “A criança aprende que às vezes as coisas dão errado, mas podem ser resolvidas. E que mentira nunca é o melhor caminho”. 

Já Angela Carbonari destaca que o exemplo, seja em casa ou na escola, é uma das melhores maneiras de ensinar as crianças. Afinal, não adianta pedir que elas não mintam se costumam presenciar os adultos dizendo, por exemplo, que não estão em casa quando na verdade estão ou contornando situações para evitar problemas. “A criança aprende muito através do exemplo. Não adianta nada você dizer para uma criança que é preciso respeitar o colega na escola se, quando você está no trânsito, xinga todo mundo. É preciso ter coerência entre o que se fala e o que se faz”, indica a psicóloga. 

5 abordagens para evitar diante de uma mentira na infância

O alerta se acende quando os episódios envolvendo mentiras se tornam frequentes, podendo ser indicativo de que algo não está bem. “Pode ser uma dificuldade de lidar com limites, com aceitação ou recusa do outro, necessidade de aprovação. Nesses casos, é preciso entender o contexto da criança para encaminhar a melhor solução”, indica Elizabeth Sanada. 

A especialista também destaca cinco abordagens que devem ser evitadas por quem vai lidar com as mentiras na primeira infância: 

1. Tratar do assunto pelo viés da punição ou recompensa, uma vez que isso não gera espaço para que a criança reflita sobre o erro; 

2. Ameaçar ou prometer consequências que não serão cumpridas, pois isso informa à criança que ela pode avaliar os riscos quando pensa em fazer algo errado; 

3. Não dizer à criança como se sente diante da mentira. É importante que o adulto estabeleça uma relação de honestidade com a criança, sinalizando inclusive quando ficou magoado com determinada atitude. 

4. Apressar a resolução do conflito. Sabe aquela história do “pede desculpa e abraça o amiguinho que tudo vai ficar bem”? Às vezes é preciso dar tempo para que a criança entenda como sua atitude afetou o outro. 

5. Quebrar o vínculo de confiança estabelecido. Por exemplo, pedir que a criança confie em você para imediatamente depois que a verdade aparecer, ela ser colocada de castigo sem maiores explicações não ajuda em nada. 

Autora: Andressa Basilio

* Conteúdo produzido e editado pelo Porvir.

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